Como é ser um Morcego?

Thomas Nagel


A consciência é o que torna o problema mente-corpo realmente intratável. Talvez seja por isso que as discussões atuais do problema dão a ela pouca atenção, ou a abordam de modo obviamente errado. A recente onda de euforia reducionista vem produzindo várias análises dos fenômenos e dos conceitos mentais, construídas para explicar a possibilidade de alguma variedade de materialismo, identificação psicofísica ou redução.


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Eu tentarei explicar porque os exemplos usuais não nos ajudam a compreender a relação entre mente e corpo, e porque nós de fato não temos, presentemente, qualquer concepção do que seria uma explicação de um fenômeno mental em termos físicos. Sem a consciência, o problema mente-corpo seria bem menos interessante. Com a consciência, ele parece insolúvel.


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Negar a realidade ou a significância lógica do que nós não poderemos nunca descrever, ou entender, é a forma mais grosseira de dissonância cognitiva. 

Alguém pode acreditar, além disso, que existem fatos que não poderiam nem mesmo ser representados ou compreendidos pelos humanos, mesmo que a nossa espécie durasse para sempre, simplesmente pela nossa estrutura não poder operar com os conceitos do tipo requerido. Tal impossibilidade poderia também ser constatada por outros seres, mas não é claro que a existência desses seres, ou a possibilidade da sua existência, seja uma pré-condição da significância da hipótese de que há fatos humanamente inacessíveis. A reflexão sobre como é ser um morcego parece nos conduzir, então, à conclusão de que há fatos que não consistem na verdade de proposições que possam ser expressas numa linguagem humana. Nós podemos ser compelidos a reconhecer a existência de tais fatos, sem estarmos aptos a formulá-los ou compreendê-los. 
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Não me refiro aqui à suposta privacidade da experiência para quem a possui. O ponto de vista em questão não é um [ponto de vista] que apenas um único indivíduo tem acesso. Ao invés disso, trata-se de um tipo. Frequentemente, é possível adotar um ponto de vista diferente do nosso próprio; logo a compreensão de tais fatos não é limitada ao caso da própria pessoa. Há um sentido no qual os fatos fenomenológicos são perfeitamente objetivos: uma pessoa pode conhecer ou falar sobre a qualidade das experiências do outro. Elas são subjetivas, no entanto, no sentido em que mesmo essa atribuição objetiva de experiência só é possível para alguém suficientemente similar ao objeto da atribuição para estar apto a adotar o seu ponto de vista, para compreender a atribuição na primeira pessoa tão bem quanto na terceira, por assim dizer. No nosso próprio caso, ocupamos o ponto de vista relevante, mas teremos tanta dificuldade em compreender apropriadamente a nossa própria experiência se a abordarmos a partir de um outro ponto de vista, quanto teríamos se tentássemos compreender a experiência de uma outra espécie sem que adotássemos o seu ponto de vista. 
Isto é diretamente relevante para o problema mente/corpo. Se os fatos da experiência – fatos sobre como é para o organismo que tem a experiência – são acessíveis apenas de um ponto de vista, logo, é um mistério como o verdadeiro caráter das experiências poderia ser revelado através das operações físicas do organismo. 
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Parece que estamos face a uma dificuldade geral a respeito da redução psicofísica. Nas outras áreas, o processo de redução vai em direção à maior objetividade, à visão mais acurada da natureza real das coisas. Isto é realizado diminuindo a nossa dependência de pontos de vista individuais, ou específicos-a-espécies, relativos ao objeto de investigação. Não o descrevemos em termos das impressões que ele [o objeto] deixa nos nossos sentidos, mas em termos dos seus efeitos mais gerais, e das propriedades detectáveis por meios outros que os sentidos humanos. Quanto menos depender de um ponto de vista estritamente humano, tanto mais objetiva é a nossa descrição. É possível seguir esse caminho porque, apesar de os conceitos e ideias empregados por nós ao pensar a respeito do mundo externo estarem sendo aplicados, inicialmente, a partir de um ponto de vista que envolve o nosso aparato perceptual, eles são usados para nos referirmos a coisas além deles mesmos – diante das quais nós temos o ponto de vista fenomênico. Portanto, nós podemos abandoná-lo em favor de outro, e ainda continuar pensando acerca das mesmas coisas.
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Certamente parece improvável que nós nos aproximaremos da natureza real da experiência humana deixando para trás a particularidade do nosso ponto de vista humano, e empenhando-nos em obter uma descrição em termos acessíveis a seres que não poderiam imaginar o que é ser como nós. Se o caráter subjetivo da experiência é completamente compreensível somente de um ponto de vista, então qualquer deslocamento em direção a uma objetividade maior – isto é, menos vinculada a um ponto de vista específico – não nos leva mais próximo da natureza real do fenômeno: leva-nos para mais longe dela.
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A maior parte do neobehaviorismo da psicologia filosófica recente resulta do esforço para substituir um conceito objetivo de mente pela coisa real, a fim de nada deixar para trás que não possa ser reduzido. 
Isso explica o sabor mágico das apresentações populares das descobertas científicas fundamentais, divulgadas como proposições as quais se deve aprovar sem compreendê-las realmente. Por exemplo, diz-se para as pessoas em uma certa idade precoce, que toda matéria é, na realidade, energia. Mas apesar do fato de elas saberem o que significa "é", muitas delas nunca chegam a formar uma concepção sobre o que torna tal sentença verdadeira, pois lhes falta a base teórica.
No momento atual, o status do fisicalismo é similar àquele que teria a hipótese segundo a qual "matéria é energia", se tivesse sido pronunciada por um filósofo pré-socrático. Nós não temos os rudimentos de uma concepção de como isso poderia ser verdadeiro. Para entender a hipótese de que um evento mental é um evento físico, precisamos mais do que o entendimento da palavra "é". Falta-nos a ideia de como um evento mental e um evento físico podem referir-se à mesma coisa, e as analogias com identificações teóricas em outros campos fracassam em suprir isso. Elas fracassam porque, se nós entendermos a referência de termos mentais a eventos físicos segundo o modelo usual, nós obtemos ou um reaparecimento de eventos subjetivos desconectados [separate] – como efeitos através dos quais a referência mental a eventos físicos é assegurada – ou então nós obtemos uma explicação falsa de como os termos mentais referem (por exemplo, uma descrição behaviorista-causal). 

Estranhamente, nós podemos ter evidência da verdade de algo que não podemos realmente compreender.

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